2008/12/31

"Discriminados em tudo"

Entrevista com Dom José Maria Pires, "dom Zumbi"

Dom José Maria Pires é um arcebispo diferente e seu apostolado em João Pessoa (PB) está rodeado de simbolismo. Negro, dom José ficou conhecido como dom Pelé; depois ganhou o dom Zumbi como apelido. Ao lado de Dom Helder Câmara, lutou desde a década de 80 por uma igreja participativa, defendeu padres casados, índios e o respeito às raízes da cultura africana. Foi criticado dentro e fora da igreja por sua postura progressista. Nesta entrevista, dom Zumbi - aos 89 anos, sendo 50 como bispo da Igreja Católica - fala de negros, do Brasil preconceituoso e da exclusão dos quilombolas, causa encampada há mais de 20 anos. Hoje, dom Zumbi mora em Minas Gerais, sua terra natal, de onde falou com a reportagem do Diario.

O Sr. acha que no Brasil os negros são libertos?

Não no estilo que os livros dizem. Sempre os negros lutaram pela libertação. Na época da escravatura, um negro que conseguia libertar-se logo ia trabalhar para libertar o outro. Quando eram três ou quatro formavam o quilombo para conseguir os recursos para libertar outros negros. Quando veio a libertação de 1888 o número de negros escravos era realmente pequeno e os quilombolas perpassavam o Brasil inteiro. A história não conta isso porque essa é a história do pobre, do pequeno e os livros não registram essas coisas. O Brasil tem uma dívida grande para com os negros.

Na sua opinião, o que significa 120 anos da abolição da escravatura?

A abolição mesmo, digo o decreto da princesa Isabel, representou muito pouco para os negros. A libertação, ao invés de ajudar, em certo sentido atrapalhou. Só a libertação não representou para os negros uma libertação ou um favor.

Essa lacuna do decreto ainda repercute sobre os quilombolas?

Mais é claro. Em certo sentido,os negros só sobreviveram porque realmente foram muito fortes e unidos, mas eles tiveram péssimas condições em todo o tem po. Os portugueses misturavam todo mundo. Separavam filhos de pai, mãe e irmã, misturavam gente de todas as áreas. Os negros sobreviveram porque foram muito fortes.

A situação dos quilombolas é de uma exclusão social que parece mais gritante. O que é preciso para as pessoas serem incluídas?

Simplesmente, não discriminá-las como são discriminadas. O negro é discriminado em tudo. Não tem terras - as terras que ficaram para os quilombos são terras pequenas e pouco produtivas. Seria necessário mais uma integração social a partir do nascimento.

A quem caberia o primeiro passo? A uma esfera de governo ou da sociedade?

Tudo junto. Os negros têm mostrado que têm condições de dar uma contribuição à sociedade. O negro não é superior a ninguém, mas também não é inferior. É diferente. Isso não se respeitou no Brasil. O que quis se fazer foi um branqueamento. Que o negro fosse vivendo como branco.Então, na escola tem que estudar como branco, na sociedade tem que se co mportar como branco, na igreja tem que rezar como branco. Isso quando ele tem toda uma cultura que é própria do negro. Mas se essa cultura não foi respeitada, hoje deveria se respeitar toda essa identidade do povo negro. Cabe ao governo, à sociedade. Mas, na medida que um desses setores por exemplo vão se abrindo, a sociedade vai sentindo a repercussão.

O Sr. luta pelo negro sobretudo a partir da década de 80. Houve avanços quanto o tratamento oferecido a negros e quilombolas?

Grandes, não. Substanciais tem havido. Por exemplo, na legislação, por não haver uma discriminação pelo fato de ser negro. Como nas igrejas... .Você vê que em algumas congregações, no próprio estatuto, tinham cláusulas que proibiam pessoas de cor. Eu tinha uma irmã que queria ser religiosa e ela tentou cinco congregações e nenhuma delas queria receber. Ao final, foi recebida nas missionárias Jesus Crucificado. A Igreja deu um passo porque antes não se recebia de forma nenhuma. Na sociedade, aconte cia outra coisa: negro não podia freqüentar certas escolas.

O que o Sr. lamenta não ter conseguido em favor dos negros?

O que eu quero é continuar a lutar contra todo tipo de discriminação dentro da igreja, por uma igreja cada vez mais laical e menos clerical. Porque a igreja é povo de Deus. O evangelho de Jesus Cristo dá tantos sinais de que não faz distinção e a igreja faz.

Se o Sr. fosse presidente, o que faria para melhorar a vida dos negros e dos quilombolas?

Aquilo que esperávamos que Lula fizesse o que ele fez em grande parte. A situação do povo no Brasil melhorou, mas esperávamos um pouco mais. Eu disse para Frei Beto que eles deveriam seguir a teoria de Tancredo Neves. Quando ele foi eleito, perguntaram a ele: e a dívida? Ele respondeu: - 'Não se paga a dívida com a fome do povo. Honre as dívidas, mas primeiro vamos cuidar a fome do povo'. Então, o único ponto negativo do governo Lula é que o governo não deu condições, força e poder para o pov o se organizar.

Fonte: CNBB e Jornal do Comércio