Cardeal Dom Eusébio Oscar Scheid
Administrador apostólici da Arquidiocese do Rio de Janeiro
Administrador apostólici da Arquidiocese do Rio de Janeiro
A Paixão de Cristo pode ser sintetizada em três elementos fundamentais. Em primeiro lugar, como demonstração de seu amor infinito. Quando começa a narrar tudo o que aconteceu na Última Ceia, continuando com a agonia no Horto das Oliveiras e consequente prisão e condenação, paixão e morte de Cristo, São João diz: "Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao máximo" (Jo 13,1). Este é o momento extremo, o ponto mais elevado até onde Jesus podia chegar. Trata-se de um amor infinito, porque Ele é Deus; ama-nos tanto através da sua natureza divina como da sua natureza humana, pelo sujeito responsável de sua personalidade, que é a Pessoa divina do Verbo.
O segundo elemento fundamental é a doação total. "Ninguém me tir a a vida, mas eu a dou livremente" (Jo 10,18a). Jesus iria dar realmente a vida, mas não precisava dá-la de forma tão trágica e cruel, pela cruz que nós lhe impusemos. Entretanto, ele assim o permitiu, livremente, por amor e aceitou com heroísmo martirial.
Por fim, o terceiro e trágico elemento é o derramamento do sangue, que jorrou em abundância, pois Jesus no-lo deu todo, até a última gota. Mesmo depois de morto, quando seu Coração foi aberto, ainda saiu um pouco de sangue, misturado com água (Jo 19,34).
Vamos abordar mais detidamente este derramamento de sangue, uma vez que os dois primeiros elementos (o amor infinito e a doação) já se encontram simbolizados neste gesto supremo de Jesus. O sangue, para os judeus, foi sempre considerado como veículo de vida. A circulação abundante de sangue no corpo de uma pessoa significava que ela tinha vida em profusão; caso este escoasse, considerava-se a pessoa doente, a princípio, e por fim, irremediavelmente perdida. Isto a tal ponto que se dizia: "Sem derramamento de sangue não há nem mesmo salvação"(Hb 9,22b). A alma de nosso corpo é o sangue, assim fala também a Sagrada Escritura. Ao considerarmos o sangue como veículo de vida, entendemos quão importante é o seu uso nos rituais judaicos: aspersão com sangue para purificação, por ocasião da imolação de vítimas quais ofertórios agradáveis ao Senhor, conforme o exigia a lei do Pentateuco.
Era proibido usar o sangue para alimentação. Esta pode ter sido uma norma até mesmo de higiene, pois sabe-se que ele é muito gorduroso; porém, tratava-se principalmente de respeito ao sangue. Outro fator de ordem cultural: os contratos mais importantes, vitais, eram selados com sangue de ambos os contratantes. O sangue também servia como sinal de proteção. Este foi o caso dos umbrais das portas, assinalados com o sangue do cordeiro, preservando seus habitantes da matança dos primogênitos pelo anjo destruidor (cf. Ex 12,12-13). Por isso, a maior violência que se poderia cometer era derramar o sangue de alguém inocente. "Não se toque na pessoa, não se toque no seu sangue", era um ditame para todos os que comungavam a mesma fé religiosa, naquela época.
Cristo veio inaugurar uma total inversão de conceitos, de grande importância para entendermos também o mistério da Eucaristia. Por ocasião de seu grande discurso em Cafarnaum, deu-se o grande choque. Em certo momento, Jesus diz: "Eu quero que todos tomem o meu sangue, matem a sua sede com o meu sangue" (Jo 6,53-56). Isto provocou um choque inaudito, também nos Apóstolos. Embora não entendendo, estes aceitaram a palavra de Jesus, porque ele era o Divino Mestre. Nessa ocasião, quase todos os judeus se afastaram de Jesus, dizendo: "Essa palavra é dura! Quem pode escutá-la?" (Jo 6,60b). E na Ceia, Jesus toma uma copa com vinho e o transforma no seu sangue; este é um milagre até então absolutamente desconhecido. E diz ainda: "Bebei dele todos, pois isto é o meu sangue, o sangue da Alia nça, que é derramado por todos para remissão dos pecados" (Mt 26,27b-28).
Na linguagem profética do Antigo Testamento, também encontramos esta imagem, como em Is 12,3: "Com alegria tirareis água das fontes da salvação". A exegese da Igreja sempre reconheceu nestas "fontes" as chagas de Cristo, das quais haurimos toda a força da nossa redenção, especialmente, do seu Coração aberto, que jorra a salvação sobre a humanidade inteira. O Cristo mesmo nos convida: "Quem tem sede venha a mim e beba" (Jo 7,37b). E nós matamos a nossa sede de tudo o que é mais nobre, que nos transcende, dentro desse sangue que tem valor infinito: sede de Deus, sede de valores que não pereçam nunca, sede de justiça... Matamos até a saudade que temos de Deus.
São Paulo recorda: "Quem toma o sangue de Cristo, há de sentir um pouco de saudades dele" (1 Cor 11). A recordação de Jesus, que já não estava entre eles visivelmente, era suscitada pela celebração desse seu sangue e causava expectativa pela sua definitiva volta. Anunciando a sua memória, esperavam a sua vinda, desejando que fosse o quanto antes. E ainda, numa passagem de Colossenses, o Apóstolo prisioneiro repensava toda a sua teologia e a sua espiritualidade: "Nós recebemos a paz através do seu sangue, somos pacificados no seu sangue" (Cl 1,20). Isto só entende quem de fato comunga o sangue de Cristo e anela pelo impulso da paz.
Sem o sangue de Cristo, o mundo não será purificado. Ele diz: "O meu sangue é derramado para a salvação de todos" (Mt 26,27b-28). Esse sangue inocente que nos purifica, transforma, salva e santifica, é que nós invocamos sobre o mundo. "Que o sangue de Cristo caia sobre nós e sobre nossos filhos" (Mt 27,25), gritavam os judeus em blasfêmia, na hora em que pediram a condenação de Jesus. Nós dizemos em profunda oração e gratidão:
"Que o seu sangue caia de fato sobre nós, sobre as páginas da história manchadas com sangue inocente, sobre aqueles legisladores que estão querendo dene grir até a nossa lei, introduzindo o flagelo do aborto. Que seu sangue caia sobre nós, nos purifique e nos previna de todo crime contra o sangue inocente. Que seu sangue nos propicie a paz!"
Fonte: CNBB